quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Felicidade Parte IV Herman Hesse




"Foi nos meus tempos de menino de escola, e o singular, legítimo, primitivo e mítico nessa experiência, o estado de ser um com o mundo num riso silencioso, a total liberdade em relação a tempo, esperança e temor, o absoluto presente não pode ter durado muito, talvez não mais do que alguns minutos.
Certa manhã - eu era menino agitado, de uns 10 anos -, acordei com uma sensação inusitada, profunda e doce, de alegria e bem estar, que me iluminava inteiro como um sol interior, como se agora mesmo, naquele instante do despertar de um bom sono de menino, algo de maravilhoso, de novo me tivesse acontecido, como se todo o meu pequeno-grande mundo de menino estivesse numa situação nova e mais elevada, tivesse entrado em outra luz e clima, como se só agora, cedo de manhã, toda a bela vida tivesse adquirido todo o seu valor e sentido. Eu nada sabia de ontem nem de amanhã, estava rodeado e inundado daquele hoje feliz. Aquilo fazia bem, e meus sentidos e minha alma o saborearam sem curiosidade nem justificação. Aquilo me invadia e tinha um gosto magnífico.
Era de manhã, pela janela alta eu vi sobre a longa cumieira do telhado do vizinho o céu alegre de um azul-claro puro, também ele parecia feliz como se pretendesse coisas especiais e tivesse posto para essa ocasião sua melhor veste. Não se via mais do mundo ali da minha cama, só aquele elo céu e o longo pedaço de telhado da casa vizinha, mas também esse telhado, esse telhado monótono e desinteressante de telhas castanho avernelhadas parecia rir, sobre uma parede oblíqua íngreme e sombreada perpassava um leve jogo de cores, e uma única telha de vidro azulada no meio das de cor vermelha parecia viva, parecia alegremente desejosa de espelhar algo daquele céu matinal de brilho leve e permanente.
O céu, a quina um tanto grosseira da cumieira do telhado, o exército uniforme das telhas marrons e o azul translúcido da única telha de vidro pareciam harmonizar-se de maneira bela e alegre, nada queriam, visivelmente, senão naquela hora matinal especial rir umas com as outras, e querer-se bem.
Azul-celeste, marron telha e azul vítreo pertenciam uns aos outros, brincavam entre si, sentiam-se bem, e era bom e fazia bem vê-los assim, participar do seu brinquedo, sentir-se inundado, como eles, pelo mesmo brilho da manhã e pela mesma sensação de bem estar.
Assim, no começo da manhã, fiquei deitado saboreando junto com tudo isso  a calma sensação do sono que recém acabara, uma bela eternidade em minha cama, e, se saboriei felicidade igual ou semelhante mais vezes em minha vida, nenhuma poderia ser mais profunda e mais real: o mundo estava em ordem.
E, se essa felicidade durou cem segundos ou dez minutos, era tão atemporal que se parecia tão perfeitamente com qualquer outra felicidade legítima quanto uma borboleta azul se parece com outra. Aquilo foi transitório, foi recoberto pelo tempo, mas era profundo e eterno o bastante para depois de mais 60 anos ainda me chamar e atrair, e eu, com os olhos cansados e dedos doloridos, ainda tenho de me esforçar para o invocar e lhe sorrir, e o descrever. Essa felicidade não consistia nada além da harmonia de algumas poucas coisas ao meu redor com o meu próprio ser, um bem-estar sem desejos, que não exigia nenhuma mudança nem intensificação.
Ainda estava tudo quieto na casa, e também lá fora não se ouvia um som. Se não fosse esse silêncio, provavelmente a lembrança dos deveres cotidianos, da necessidade de levantar-me e ir à escola, teria perturbado meu bem estar. Mas óbviamente não era nem dia nem noite, era a doce luz e o azul risonho, sem passos de criadas nas lajes do pátio nem porta rangendo, nem padeiro subindo as escadas. Esse momento matinal estava fora do tempo não levava a nada, não indicava nada iminente, bastava-se a si mesmo, e como me incluísse inteiramente, para mim não havia dia nem pensamento de levantar ou ir à escola, nem tarefas mal cumpridas nem vocábulos mal aprendidos, café da manhã apressado na arejada sala de jantar.
A eternidade da felicidade dessa vez foi desfeita pela intensificação do belo, por um mais e demais de alegria. Enquanto eu estava ali deitado sem me mover, e o silencioso e claro universo matinal penetrava em mim e me absorvia, algo inusitado, algo brilhante e excessivamente claro e dourado e triunfante varou o silêncio, cheio de uma atrevida alegria, pleno de uma doçura sedutora e inquietante: o som de uma trombeta.
E, enquanto eu, só agora plenamente desperto, me sentei na cama afastando os cobertores, o som mostrou ser de duas vozes, de mais vozes ainda: era a banda da cidade que marchava pelas ruelas, um acontecimento muito raro e excitante, cheio de uma festividade barulhenta que fez meu coração de criança rir e soluçar a um tempo, como se toda a felicidade, todo o encanto daquela hora sublime tivesse se diluído naqueles sons agridoces e excitantes., e agora se derramasse, despertado e retornado ao temporal e ao transitório.
Saí da cama num segundo, tremendo de alegria solene, corri atravessando a porta para o quarto ao lado, de cuja janela se via a rua. Num tumulto de encanto, curiosidade e desejo de participar, debrucei-me numa janela aberta, escutei feliz os sons altivos da música que aumentavam e vi e ouvi as casas vizinhas e as ruas acordando, tomando vida e enchendo-se de rostos, figuras e vozes - e no mesmo segundo eu soube também tudo aquilo que esquecera inteiramente naquele momento de bem-estar entre sono e dia. Eu soube que  com efeito naquele dia não haveria aulas, era um feriado importante, penso que era aniversário do rei, haveria desfiles, bandeiras, música e uma alegria inusitada.
E, sabendo disso eu tinha voltado, estava novamente submetido às leis que regem o cotidiano, e ainda que não fosse um cotidiano, mas um dia de festa para o qual eu fora despertado pelos sons de  metais, o verdadeiro e belo e divino naquele encanto matinal passara, e sobre aquele pequeno milagre suave voltaram a se fechar as ondas do tempo, do mundo, da banalidade."

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