quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Felicidade - Parte III Herman Hesse


" Sonhar com aqueles tempos florescentes foi-se perdendo aos poucos, líamos livros de história, líamos Schopenhauer, desconfiávamos do superlativo e das belas palavras, aprendemos a viver espiritualmente em um clima abafado e relativizado - e mesmo assim a palavra felicidade , onde quer que a encontrássemos inesperadamente, soava com o velho som dourado e cheio , continuava sendo pressentimento ou memória de coisas de altíssimo valor. Talvez, pensávamos por vezes, pessoas simples e infantis podiam chamar de felicidade aqueles bens concretos da vida, mas nós pensávamos antes em algo como  sabedoria, superioridade, tolerância, certeza da alma, tudo o que era belo e nos alegrava, mas sem merecer um nome tão arcaico, pleno e profundo como felicidade.
Entrementes minha vida pessoal chegara a um ponto em que eu sabia que não era feliz, e que também a busca da chamada felicidade não tinha ali espaço e sentido. Numa hora patética eu talvez designasse essa situação como Amor Fati mas no fundo nunca tive grande tendência para o pathos, a não ser em breves exceções e breves estados de excitação. E também o amor sem desejo e nada patético, à Schopenhauer, não era mais meu ideal absoluto, desde que eu aprendera aquele modo silencioso, inaparente, lacônico e sempre um pouquinho zombeteiro de sabedoria em cujo solo brotara, os relatos da vida dos mestres chineses e as parábolas do Tchuang Tsi.
Bem, não quero divagar. Pretendo dizer algo bastante definido. Primeiro, e para não perder o fio, tento formular com palavras abrangentes qual o conteúdo e significado que tem para mim hoje em dia a palavra felicidade. Hoje entendo por felicidade algo bem objetivo, isto é, a totalidade mesma. O ser atemporal, a eterna música do universo, isso que outros chamaram de harmonia das esferas ou sorriso de Deus. Esse conceito, essa música infinita, essa eternidade de sons plenos e de brilho dourado é presente puro e perfeito, não conhece tempo, história, antes e depois. Eternamente brilha e ri o semblante do mundo, enquanto seres humanos, gerações, povos, reinos, surgem, florescem e novamente caem nas sombras e no nada. A vida produz uma música permanente , dança incessantemente sua ciranda, e o que a nós efêmeros, a nós ameaçados e caducos mesmo assim é dado em alegria, conforto e riso, é luz que vem de lá, é um olho cheio de brilho e um ouvido cheio de música.
Se alguma vez realmente houve aquelas pessoas lendariamente "felizes", ou se aqueles felizardos louvados com inveja, os filhos do sol e os senhores do mundo foram iluminados pela grande luz apenas em horas ou momentos festivos e abençoados, não tiveram outra felicidade nem partilharam de nenhuma outra alegria.
Respirar num presente perfeito, cantar no coro das esferas, dançar na ciranda no mundo, rir com o eterno riso de Deus, é o que nos cabe como parte da felicidade. Muitos só tem isso uma vez, muito poucas vezes. Mas quem o viveu não foi feliz só por um instante, pois levou consigo algo desse brilho e melodia, dessa luz da alegria atemporal, todo o amor que foi trazido a este mundo pelos amantes, todo o consolo e alegria que foi trazido pelos artistas, e às vezes séculos depois continua brilhando como no primeiro dia, vem de lá.
No curso de uma vida inteira cheguei a esse significado abrangente, universal e sagrado da palavra felicidade, e talvez seja preciso dizer expressamente àqueles de meus leitores que ainda são meninos de escola, que não estou aqui fazendo filologia, mas contando um pedacinho da história de uma alma, e que estou muito longe de os estimular a também darem em sua linguagem oral e escrita o mesmo tremendo significado à palavra felicidade. Mas para mim, em torno dessa sublime, dourada e simples palavra reuniu-se tudo o que desde a infância senti ouvindo-a.
A sensação era evidentemente mais forte na criança, a resposta de todos os sentidos a suas qualidades sensórias e à sua convocação eram mais intensas e mais ruidosas, mas, se a palavra em si  não fosse tão profunda, tão arcaica e tão universal, minha idéia do eterno presente, do "rastro dourado" (na boca de Goldmund) e do riso dos imortais ( em "O Lobo da Estepe") não se teria cristalizado em torno dessa palavra.
Quando pessoas que envelheceram tentam recordar quantas vezes e com que intensidade sentiram felicidade, procuram primeiramente em sua infância, e isso é correto, pois para vivenciar felicidade é preciso sobretudo independência do tempo, e com isso do medo e da esperança, e em geral com os anos as pessoas perdem essa capacidade. Mesmo eu, quando tento recordar momentos em que participei do brilho  do eterno presente, do sorriso de Deus, volto sempre a infância e encontro lá as mais frequentes e valiosas experiências desse tipo. É verdade que os tempos alegres da adolescência eram mais coloridos, festivos e agitados, o espírito participava mais deles do que nos anos de infância.
Mas, olhando melhor e melhor, ali havia mais divertimento e graça do que realmente felicidade. A gente era divertida, engraçada, espirituosa, a gente fazia muitas boas brincadeiras. Lembro de um momento no grupo de meus colegas no florido tempo da juventude: um inocente perguntou, na conversa, o que era afinal um riso homérico, e eu respondi com uma risada ritmada, que se escandia precisamente como um hexâmetro.
Todos riram alto, brindaram tocando os copos, mas momentos desses não se sustentam quando lembrado mais tarde. Tudo aquilo era bonito, foi divertido, saboroso, mas não era felicidade.
Depois de analisar isso por algum tempo, a felicidade parecia ter sido experimentada só na infância, em horas ou momentos difíceis  de reviver, pois também ali no reino da infância o brilho nem sempre parecia legítimo quando bem examinado, o ouro nem sempre tão puro. Vendo bem, restavam apenas poucas vivências, e também  elas não eram quadros que se pudessem pintar, histórias que se pudessem contar, esquivavam-se agilmente quando questionados.
Se uma lembrança dessas se apresentava, parecia no começo tratar-se de semanas ou dias ou pelo menos um dia, um Natal quem sabe, um aniversário ou um dia de férias. Mas para reviver na memória um dia da infância seraim precisas mil imagens, e para nenhum único dia, nem mesmo para meio dia, a memória traria de volta quantidade suficiente de imagens.
Quer se tratasse de experiências de dias, horas ou minutos, vivi a felicidade algumas vezes, por instantes estive próximo dela. Mas daqueles encontros felizes do começo da vida, sempre que os convoquei, interroguei e examinei, um especialmente persistiu."

Sigo amanhã com a parte final da "felicidade" de Herman Hesse...

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