terça-feira, 25 de outubro de 2011

Felicidade - Parte II Herman Hesse

Herman Hesse

"Assim como houve músicos que preferiram certos instrumentos ou tonalidades de voz, ou se aborreciam particularmente com eles, ou deles desconfiavam, assim a maioria das pessoas, na medida em que têm um senso de linguagem, preferem certas vogais e séries de letras enquanto evitam outras; e, se alguém ama um escritor especial, ou o rejeita, também o gosto linguístico e o ouvido linguístico desse escritor participa disso, sendo familiares ou estranhos a seu leitor.
Eu poderia,por exemplo, mencionar uma série de versos e poemas que amei décadas a fio e ainda amo, não pelo sentido, sabedoria ou conteúdo em experiênia, bondade, grandeza, mas unicamente por uma determinada rima, um determinado desvio rítmico do esquema convencional, a escolha de vogais preferidas, que o escritor pode ter feito de modo tão inconsciente quanto o leitor que as exercita.
Da construção e ritmo do texto de Goethe ou Brentano, de Lessing ou E.Th.Hoffmann, pode-se deduzir muito mais sobre as características, a tendência física e espiritual do escritor, do que daquilo que esse trecho de prosa nos diz. Há frases que podem estar no texto de vários escritores, e outras que só seriam possíveis em um único desses músicos da linguagem. Para nós as palavras são a mesma coisa que as cores da palheta são para o pintor. Existem incontáveis delas, e surgem sempre novas, mas as boas palavras, as verdadeiras, são menos numerosas, e em 70 anos de vida não vi surgir nenhuma nova.
Também as cores não existem em muito grande número, ainda que sua tonalidade e misturas sejam incontáveis. Entre as palavras existem para cada falante  as prediletas e as estranhas, preferidas e evitadas, cotidianas - que usam mil vezes sem temer o desgaste - e outras - solenes - que, por mais que as amemos, só pronunciamos ou escrevemos com cuidado e reflexão, como objetos raros: fazendo as escolhas que correspondem a essa sua solenidade.
Entre elas está para mim a palavra felicidade.
É uma dessas que sempre amei e escutei com prazer. Por mais que se discuta e argumente sobre seu significado, seja como for, ela significa algo belo bom e desejável. E acho que o som da palavra corresponde a isso.
Parece-me que essa palavra, apesar de sua brevidade* ,(* referência a glück, palavra alemã para felicidade, que tem apenas uma sílaba (N.E.))  tem algo de espantosamente denso e cheio, algo que lembra ouro, e com certeza além da plenitude e densidade também lhe é próprio o brilho parece morar em ruas,  breves sílabas como o raio nas nuvens, começando tão fluída e sorridente, repousando com um sorriso no meio, e terminando de maneira tão decidida.
Era uma palavra para rir e chorar, cheia de fascinação e sensualidade. Se a quiséssemos sentir direito, bastava colocar ao lado desse dourado algo tardio, plano, fatigado, de níquel ou cobre, como realidade ou utilidade, e tudo ficaria claro. Sem dúvida, ela não nascia de dicionários nem salas de aula, não era inventada, derivada ou composta, era algo uno e redondo, perfeito, vinha do céu ou da terra como luz do sol ou uma visão de flores. Que bom, que felicidade, que  consolo, haver palavras assim! Viver e pensar sem elas seria murcho e ermo, seria como viver sem pão nem vinho nem música nem riso. Para esse lado, o natural e sensório a minha relação com a palavra felicidade nunca se desenvolveu nem modificou, a palavra contínua hoje tão breve e pensada e brilhante como sempre, eu a amo ainda como amei na meninice.
Mas o que esse símbolo mágico significa, o que se quer dizer com essa palavra tão simples quanto densa, sobre isso minhas opiniões e pensamentos mudaram muito, e só muito tarde chegaram a uma conclusão clara e determinada. Até bem depois da metade da minha vida eu a aceitava sem a examinar, certo de que na boca das pessoas felicidade era algo positivo e absolutamente valioso, mas no fundo meio banal.
Bom berço, boa educação, boa carreira, bom casamento, progresso na casa e na família, respeito das pessoas, bolsa cheia, baús repletos, pensáva-se em tudo isso ao dizer "felicidade", e eu fazia como todo mundo.
Parecía-me haver as pessoas felizes e as outras, assim como havia as sensatas e as outras. Também falávamos de felicidade na história universal, pensávamos conhecer povos felizes, épocas felizes. Mas nós mesmos vivíamos no meio de um período inusitadamente "feliz", estávamos rodeados da felicidade de uma paz prolongada, de uma ampla liberdade, de um importante conforto e bem-estar, como num banho morno, e mesmo aasim percebíamos isso, aquela felicidade era apenas natural, e nós jovens naquele momento aparentemente tão amável, confortável e pacífico éramos esnobes e céticos, coqueteávamos com a morte, com a degeneração, com a interessante anemia, falando da Florença do Quatrocento, da Atenas de Péricles e de outros tempos passados como sendo "felizes". "
Amanhã, sigo postando..pois tem mais..bem mais meus queridos. avant!!!!

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