Como uma democracia pode prosperar se há gente nas ruas (1) orando para um pneu, (2) saudando ETs ou (3) achando que o presidente da República tem vários clones?
Tudo isso é verdadeiro. Acontece. E aconteceu.
Afinal, o que é um néscio? O que é idiotia? Moniz Sodré escreveu interessante coluna na Folha de S.Paulo no dia 7 de setembro último.
Diz o articulista que vexame nenhum repercute na “raiz” da idiotia e seus rizomas: doença autoimune, “mente defensiva, como um condomínio fechado” (Luis Fernando Verissimo). O idiota não é visto como oligofrênico, mas sujeito de uma razão privada, distorcida. Diz Sodré: não exatamente o doido, portanto, mas se trata do produto imbecilizado de uma relação difícil com o plano da existência. Na frase “a internet deu voz aos imbecis” (Umberto Eco) ressoa essa lógica. Imbecilidade, idiotia são estratégias de rejeição ao “penso, logo existo” em favor de verdades prontas e acabadas, os dogmas. Dessa forma, uma cômoda ignorância torna-se motivo de orgulho pessoal e de ódio às ciências, artes e educação emancipadora.
Outro detalhe que Sodré nos lembra: o fechamento em dogmas religiosos (o que dizer de centenas de pastores que agora inventaram uma nova moda – falar línguas estranhas para impressionar e enganar os fiéis, tudo para reforçar o pedido de dízimos e quejandos?) e formas de vida regressivas funciona como autodefesa dos alienados. E grito de alerta: cristalizada em doença social, a idiotia faz o trânsito natural para as perversões facinorosas da extrema direita. Tonta de inseticida histriônico, a barata arrisca-se a atravessar o galinheiro ou vota no chinelo.
Falemos, então, de uma epistemologia dos néscios
Mauro Mendes Dias é um psicanalista deveras interessante. Escreveu o livro O Discurso da Estupidez. É uma espécie de manual para aprender a detectar as estultices. Termômetro contra a idiotia.
Ele mostra que a estupidez não é autoengendrada. Isso porque, de um lado, ela não é sem causa; de outro, ela mantém relação com o tipo de ação da verdade que emerge parcialmente nela.
Qual verdade? Aquela que metamorfoseia em certeza. Como uma aparição do além-túmulo, ela nos faz lembrar a função que cumpre o fantasma do pai morto para Hamlet, no início da peça de Shakespeare.
Assim, tendo o sujeito se ensurdecido para qualquer tipo de dúvida ou objeção, deixa-se conduzir por uma missão que clama por vingança. Diferentemente do gesto de Ulisses na Odisseia, o tapar de ouvidos aqui é condição para o sucesso de viagem em direção às rochas da estupidez, as quais não provocam a morte dos passageiros, mas sim a sua proliferação. A estupidez não precisa de teste, verificação e fundamento, diz Mauro.
A epistemologia da estultice — curas e quejandices ou Cogito, ergo estupidus
Olhando em volta, vê-se coisas que se enquadram nessa “epistemologia da estultice”, como gente acreditando que, orando, a Covid desaparece. Aliás, uma igreja catalogou durante a Covid-19 — eu vi — 13 mil curas da Covid. A mesma igreja cura hemorroidas, segundo disse o missionário em uma pregação. Bom, de qualquer modo, a estultice não está em quem prega — isso é malandragem —, e, sim, está em quem acredita. Claro que esse fenômeno é também uma metáfora da sociedade.
Também há bons exemplos em negacionismos como “não há aquecimento global”, gente que embarca no senso comum de que, afinal, ainda cai neve no mundo e, assim, não há aquecimento. Cogito, ergo estupidus.
Queimadas na Amazônia ou Pantanal? Conspiração. Claro. Está na cara. Tudo é montagem. Na verdade, os animais calcinados são apenas imagens de filmes. Isso non ec-xiste, Padre Quevedo.
Ah, esses malditos índios e caboclos botando fogo nas florestas… Essa gente não tem senso de patriotismo? Querem destruir o meio-ambiente? Isso tem de ter um fim (selo LLS de ironia!)
Assim a nave vai. O primeiro best seller depois da Bíblia foi o livro A Nau dos Insensatos, traduzido para 34 línguas. Escrito em 1494. Sim, 1494. Mas dizem que já tem gente revisando a obra de Sebastian Brant.
Agora, o livro de Mauro Mendes Dias fala dos “neoinsensatos”, em seu magnifico Discurso da Estupidez. Permito-me ainda acrescentar: tudo isso só funciona porque existe o Discurso da Servidão Voluntária, escrito por um jovem. Nos anos 60 do século 16. E a nave vai. Isso é antigo. Bom, espero que o Étienne de La Boétie não seja cancelado. Vá que…
Fumaça, fogo, cancelamentos… e quem será o próximo? Aristóteles?
Onde há fumaça, há fogo? Depende, diria um cético pós-moderno (ups: ceticismo lembra Hume e este está condenado, ao lado de Voltaire, cuja estátua foi derrubada; logo Voltaire, hein, o cara citado todo o tempo como o “cara da tolerância”; logo, vem a derrubada da estátua de Aristóteles; bom, a Bíblia será banida — o velho testamento então…; sugiro para essa gente que quer derrubar estátuas uma leitura de Gadamer, quem disse que a distância temporal é, antes de tudo, um aliado e não um inimigo — o problema é: quem vai explicar Gadamer para eles?)
E quando acharem uma nota de rodapé para “cancelar” Gadamer também? E quando os canceladores resolverem cancelar a civilização? Paradoxo da tolerância. E não é aquele de que falava o Popper — quem deve ter algo para ser cancelado também. Já sei, gostava do Churchill, que já teve estátua derrubada — também está lascado. Veja-se que estultices não tem ideologia. São de todos os “lados”.
O negacionismo jurídico e as cinco leis da estupidez comentadas artigo por artigo
Sigo um pouco mais, para falar sobre o negacionismo e a epistemologia da estupidez na área jurídica. O interessante é que não há organização dos estultos. Mas parece haver uma mão invisível que os organiza, como lembra Carlo Cipolla, no livro Allegro, ma non tropo, uma sátira sobre a estupidez. A mão invisível do mercado da estupidez. Cipolla nos brinda com uma epistemologia dos néscios (a expressão é por minha conta), mostrando as cinco leis fundamentais, que já adapto para o direito:
1. Sempre e inevitavelmente, cada um de nós subestima o número de indivíduos estúpidos que circulam pelo mundo jurídico.
2. A probabilidade de que uma determinada pessoa formada em direito seja estúpida é independente de qualquer outra característica da mesma pessoa.
De fato, essa segunda lei também é verificável, já que nas diversas camadas da área jurídica, a distribuição do IE — índice de estupidez é quase igual. Facilmente perceptível nas redes sociais e nos comentários de colunas jurídicas aqui nesta ConJur.
3. Uma pessoa estúpida — mormente se tiver formação jurídica (porque são muitos) — é aquela que causa dano a outra pessoa ou grupo sem, ao mesmo tempo, obter um benefício para si mesmo ou mesmo causar prejuízo.
Uma pessoa estúpida é aquela que prejudica os outros e muitas vezes também ela mesma. Basta ver nas redes sociais. Se você posta algo sofisticado, o estúpido (mormente o formado em direito) vem e faz como o pombo no jogo de xadrez: esculhamba as pedras e faz cocô no tablado. E sai dizendo que venceu. De peito estufado. Orgulhoso de sua vencedora estupidez.
Por que um néscio quer esculhambar o discurso que ele não entende ou nunca se esforçou para entender? Segundo Cipolla, há ainda o supernéscio: aquele que esculhamba os não-néscios e ainda se prejudica, sendo processado pelo que postou. Ou seja, só prejuízo.
. Juristas não-estúpidas sempre subestimam o potencial prejudicial de estúpidos.
5. O estúpido (ou néscio) é o mais perigoso.
Por último, a quinta lei é autoaplicável. Como diz Cipolla, Todos os seres humanos estão incluídos em quatro categorias fundamentais: o desavisado, o inteligente, o malvado (ou ladrão) e o estúpido. De onde: (1) A pessoa inteligente sabe que é inteligente; (2) o malvado está ciente de que ele é mau; (3) o desavisado é dolorosamente imbuído do senso de sua própria sinceridade e, (4) ao contrário de todos esses personagens, o estúpido não sabe que é estúpido. Ele não sabe que não sabe.
Como acentua Cipolla, isso de não saber que não sabe (essa parte é minha) contribui para dar maior força, incidência e eficácia à sua ação devastadora. Aqueles que sabem que não sabem estão perdidos, entre todos aqueles que acham que sabem que sabem, aqueles que sabem que não sabem, mas fazem mesmo assim — razão cínica — e aqueles que não sabem que não sabem e não querem saber que não sabem tudo aquilo que não sabem e nem querem saber.
Enfim, não inventei as cinco leis. Foi Cipolla. E Mauro Mendes Dias as aperfeiçoou.