O que Lula deu e Bolsonaro
abocanhou
ROSANA
PINHEIRO-MACHADO (extraido do el pais-es)
Volta
e meia aparecem análises que denunciam as “classes ingratas” — a “nova classe
média” que aderiu ao bolsonarismo. É o sujeito que, durante os anos petistas,
comprou uma moto e abriu um negócio. Ele trocou o piso de sua casa com o
crédito que a esposa passou a receber por causa do Bolsa Família. O filho se casou e a avó, que tinha carnê nas
Casas Bahia, deu de presente uma televisão paga em 12 prestações. Esse cara,
que alguns chamam de pobre e outros de classe C, teve sua vida material melhorada nos governos do PT, mas apertou no 17
sem dó nem piedade—e com alguma convicção.
Esse
fenômeno, que é descrito como ingratidão e contradição no debate político,
permanecerá aceso até 2022, especialmente quando Lula e Bolsonaro se confrontarem. Para melhor
compreendê-lo, é importante calibrar algumas das lentes através das quais o
enxergamos.
Muito
do que eu e minha colega Tatiana
Vargas-Maia viemos pensando juntas diz respeito à importância
de se deslocar (sem abandonar, evidentemente) do espelhamento do Norte global
para entender dinâmicas que são muito características do Sul. É comum que
muitos analistas descrevam as supostas classes ingratas recorrendo ao modelo de
ascensão da extrema direita em países ricos, onde uma classe empobrecida se
ressente do presente e sente falta do passado.
Em
uma revisão de literatura recente sobre as emoções que descreviam os eleitores
de extrema direita, encontrei 53 artigos que falavam de ressentimento; 32 de
raiva; 27 de nostalgia, e 22 de ódio. Por mais importantes que sejam para
descrever a adesão e o engajamento (não raro violento) bolsonarista, esses
sentimentos não nos dão a dimensão completa do contexto brasileiro. São
categorias que foram mobilizadas para descrever a ira do trabalhador médio
norte-americano que perdeu seu trabalho numa fábrica e que perdeu poder de
compra, especialmente após a recessão.
O
trabalhador informal brasileiro não sentia falta do desmonte de um Estado de
bem-estar social e não necessariamente perdeu seu emprego por conta da crise,
pois provavelmente nunca o teve. Ao contrário: nas últimas décadas,
especialmente nos governos petistas, ele viu um horizonte de crescimento econômico
e melhoria de vida. Isso nos sugere que talvez devemos olhar mais para as
experiências do próprio Sul global, especialmente as economias emergentes, para
entender as classes precarizadas em um contexto de crescimento econômico, como
foi o Brasil na era petista.
Olhando
para o que cunhamos de “BIFs”— o grupo de emergentes Brasil, Índia e Filipinas
que guinou ao autoritarismo — a estrutura se repete: o fruto mais imediato do
crescimento econômico é o surgimento das classes aspiracionais.
Em
nossa nova pesquisa sobre subjetividade política dos trabalhadores
plataformizados nos BIFs (com a antropóloga Cristina Marins), tentamos entender
por que esses estratos tendem a se identificar com Bolsonaro, Modi e Duterte.
Celebrados
mundialmente, os BIFs eram grandes promessas democráticas do século XX. Esses
países incentivaram o empreendedorismo e consumo como parte central do modelo
de desenvolvimento. Isso não necessariamente é um problema, mas se torna mais
complicado quando não sanamos as contradições e feridas profundas relacionadas
à violência da desigualdade.
A
propaganda governamental desses países falava que agora era a hora de brilhar.
Basta lembrar do subtítulo do famoso relatório da
nova classe média, lançado durante o governo Dilma: “O lado brilhante da
pirâmide social’'. Ou mesmo o slogan de Modi “dias bons estão chegando”. Nesse
futuro promissor, os BIFs, portanto, não produziram classes entristecidas e
melancólicas, mas classes aspiracionais. Em sintonia com o desempenho
econômico, essas pessoas se viam (de forma real ou imaginada) subindo na escada
da mobilidade — e não descendo, como as classes empobrecidas dos países
desenvolvidos.
Dito
isso, alguns pontos podem nos ajudar a pensar estes setores, que são um dos
pilares do bolsonarismo, e de modo bastante semelhante do modismo e do
dutertismo.
Em
primeiro lugar, estamos todos de acordo que a raiva e o ressentimento são
dimensões fundamentais do bolsonarismo, mas elas não se sustentam sozinhas.
Outra parte estruturante das emoções —que tendemos a ignorar— é tudo aquilo que
vem da aspiração individual como projeto. O trabalho duro e o sonho de mudar de
vida e se dar bem. E o quanto as posses e a propriedade privada são vistas como
coroamento. É claro que, no Brasil, a fé e as igrejas neopentecostais são um
arcabouço perfeito para alavancar esse projeto.
Esse
sonho nada tem a ver com conseguir ter carteira assinada. Deseja-se trabalhar 18 horas no Uber para, em 5 anos, ter uma frota
para poder explorar outros por mais 18 horas. A pessoa que faz docinho e salgadinho
“para fora” passa a ser cada vez mais pressionada a vender no Instagram e no
Ifood, e a ter likes e seguidores por meio de uma plataforma que é moldada pela
recompensa do mérito individual.
Em
segundo lugar, por mais que achemos insano, Bolsonaro —ao não fazer nada pela
situação do emprego do país— fala para essas pessoas. Ao dizer que é tudo culpa
do sistema e das leis trabalhistas, ele se reconecta com uma lógica atroz do
vencedor individual, que só não vence porque tem muita lei atravancando o caminho.
Quando Lula diz, no discurso de primeiro de Maio, que irá aumentar a proteção
social e o emprego formal (o que para nós é correto), ele não fala para milhões
de precarizados do século XX, infelizmente. E a ironia é que foi Lula quem mais
entendeu e se conectou com esse perfil há poucos anos atrás.
Socialmente,
sempre pensamos no trabalho informal e no desemprego por meio de categorias
negativas como falta. Não está errado, evidentemente. Mas o que Bolsonaro e
Duterte, em particular, fazem muito bem é manipular essa lógica e falar pelo
aspecto positivo: você é o cara, o problema é todo o resto, deixa de mimimi. E
nesse aspecto faz todo o sentido, para alguns estratos, a postura negacionista
e relapsa de ambos os líderes durante a pandemia. Então, é preciso mesmo
destruir todo o sistema para que o mérito desses indivíduos possa finalmente
ser valorizado.
Em
terceiro lugar, é claro que, em debates acadêmicos ou políticos, podemos
discutir consciência de classe. Mas a acusação de “pobre de direita” não faz
sentido algum para o sujeito que se acha um muito melhor do que o vizinho
vagabundo (sic) mais pobre que ele. Para muitos, nada dá mais horror do que se
identificar com o “pelado” ou “o Zé ninguém”.
É
um padrão histórico e sociológico que, em sociedades racistas, estratificadas e
que estigmatizam a pobreza, a disputa por status entre a base da pirâmide leve
grande parte daqueles que estão acima da linha da pobreza a se identificarem
com os de cima, votando na extrema direita numa coalizão de classes que visa a
barrar políticas distributivas. O trabalho da cientista política Pavithra
Suryanarayan traz evidências sólidas de como isso se mantém na
Índia há décadas. Em tempos de fomento de classes aspiracionais, Ravinder Kaur nos
mostra, com brilhante capacidade etnográfica, que as classes aspiracionais que
ganharam alguma melhora educacional e prosperidade são famintas por mudança e
temem perder o recém alcançado status de “não ser pobre”.
No
Brasil, muitos pesquisadores estudam esse fenômeno há tempos. Laura Carvalho é
um dos nomes que sempre apontou a necessidade de se olhar com atenção para as
dinâmicas econômicas desses setores “atachados” da pirâmide. Meu ponto aqui é
também é preciso olhar para a dimensão subjetiva que vem da distinção de classe
proporcionada pela mobilidade.
Por
fim, não posso terminar esta coluna sem comentar que não é animador tentar
entender a lógica dos que se identificam com um genocida. Mas estou convencida
que essa tarefa ingrata continua sendo uma prioridade. Mais do que dizer que
nas manifestações de bolsonaristas só tinha tiozão de
Harley-Davidson (pois isso nos faz bem), seria também interessante olhar a
quantidade de moto de entregador de delivery que estava lá.
Sim, ela mesmo, a moto comprada na era Lula.
Rosana Pinheiro-Machado é
antropóloga e professora de desenvolvimento internacional da Universidade de
Bath, no Reino Unido. É autora de ‘Amanhã vai ser
maior’ (Planeta).
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