sexta-feira, 7 de junho de 2013

PROTEGGERE MARIA DO SOCORRO -



Proteggere Maria do Socorro

 
José Carlos Laitano

 






Il giorno stesso in cui ho compiuto diciotto anni, venute meno le sovvenzioni pubbliche, sono stata buttata in strada. Letteralmente, senza la minima preparazione. Abbandonata in un deserto affolato così differente da quello che fino a quel momento avevo conosciuto. E non meno ostile. Gli esterni, gli altri, così diversi, mi sembravano alieni. Poi, piano piano, ho capito che l’aliena ero io.[1]

 
Maria do Socorro tem um ano e foi abandonada. Poderia ter sido deixada numa esquina. Mas seu abandono foi ser esquecida em casa, quando casa existe, levada a mendigar nas ruas da cidade e levar tapa porque chora quando não deve.

Maria do Socorro poderia ter quatro anos, ter cara bonita e cabelos em cachos, o que despertou a atenção do namorado da mãe e a colocou no colo, sem calça.

Por diversos motivos Maria do Socorro foi parar no Conselho Tutelar e o Conselho Tutelar chamou a mãe para dar explicações. Pode ser que a mãe de Maria do Socorro tenha se mandado para outro bairro e sumido da sua vida. Mas também pode ser que a mãe tenha comparecido ao Conselho Tutelar com cara de Madalena arrependida e jurado mudar de vida ou jurado que o namorado mudou de casa. E Maria do Socorro permanece com a mãe, nas ruas da cidade, levando tapa.

Também pode ser que Maria do Socorro, embora sem mudar a vida que Deus lhe deu, nunca mais apareça no Conselho Tutelar. Paciência, um dia o governo faz a coisa certa, um dia o deputado cria vergonha, um dia a corrupção, de dinheiro ou de moral, acaba. Pode ser, um dia.

Mas também pode acontecer que Maria do Socorro retorne ao Conselho Tutelar e, depois de muitas idas e vindas, acabe numa casa que chamam de passagem. Está certo, ninguém explica que passagem é essa, uma passagem que nunca finda, ou será uma passagem para a solidão de vida sem família?

A sorte está lançada: a casa pode ser mais legal ou mais tipo depósito, assim cinquenta crianças de várias idades, todas juntas, tudo meio igual. Ou pode cair numa casa com alguma separação, digamos uma espécie de lar com dez crianças e uma mãe social, que é paga para ser mãe, mas esforça-se nos limites das suas possibilidades.

Tudo bem.

O pessoal da casa tenta o que chamam de reinserção na família natural. Lá vem a mãe novamente e, quando aparece, traz a cara da Madalena arrependida. Mas vamos tentar, insiste o pessoal da casa.

O Conselho tutelar gastou algum tempo, quem sabe meses, na primeira experiência. Agora o pessoal da casa consome outros meses na nova tentativa. Não dá resultado. Vários meses depois conclui que a mãe prostituta, drogada e algumas virtudes mais não é solução para a criança. O pai? Bem, quem sabe quem é o pai ou onde anda? Os avós. Os avós não chegam à casa dizendo que querem a neta longe. Alguns até tentam ficar com a criança, mas sua estrutura familiar já está de tal modo desgastada, a pobreza é de tal monte, e outros quetais, que não dá certo. Mas essa conclusão demandou tempo, quem sabe meses, outros meses e Maria do Socorro está completando três anos.

Vamos à família dos tios e primos. É um tal de corre pra longe que vou te contá, mal conseguem contornar as dificuldades com os filhos que já possuem, imaginem mais uma, ou duas, às vezes é um grupo de três ou quatro irmãos, comida daonde?



[1] No mesmo dia em que completei dezoito anos, apareceu menos subvenção pública, fui posta na rua. Literalmente, sem a mínima preparação. Abandonada num deserto cheio/lotado diferente daquele que havia conhecido até aquele momento. E não menos hostil. Os de fora, os outros, assim diversos, pareceram-me estranhos. Depois, pouco a pouco, entendi que a estranha era eu. (in Il suono di mille silenzi, de Emma La Spina, Ed. Piemme, Milano, Italia.

O pessoal da casa suspira, fizemos o possível. A assistente social cansou de utilizar o próprio carro correndo atrás de parentes de Maria do Socorro e gasta tempo com a papelada da burocracia que deve preencher todos os dias. Não dá. Não deu. A assistente social elabora um pequeno relatório e manda para o juiz: dá um jeito na perda do poder familiar, o negócio é adoção!

O juiz manda o papel para o promotor, para a pilha do promotor. Quando chega a vez daquele papel, o promotor escreve uma inicial - é assim que diz - para que seja decretada a perda do poder familiar. Em palavras curtas: tirar os pais biológicos da jogada e tentar uma família substituta; se possível, adoção.

A perda do poder famililiar é um processinho que o cartório entende igual aos outros. Então vai pra pilha. Em alguns dias ou semanas ele é considerado e um funcionário coloca o carimbo: à conclusão, significando: para o juiz. E vai para a pilha do juiz. Ou para a pilha do assessor do juiz.

Demora, mas finalmente o papel é considerado pelo assessor do juiz e ali é colocada a seguinte expressão: cite-se. Quer dizer: manda avisar aos interessados que houverem, especialmente os pais biológicos, que eles estão quase perdendo o poder de pais sobre a criança. Mas a mãe só aparece no barraco tarde da noite e oficial de justiça tarde da noite é complicado. Passa o tempo, quem sabe lá um dia ela dorme demais e é localizada. Mas o pai já era.

Muito tempo depois, o que pode ser uma semana, um mês, um ano, o oficial escreve no papel que o pai já era. E entrega no cartório e o papel vai para a pilha do cartório. Depois o carimbo conclusão e o papel vai para a pilha do assessor do juiz e algum tempo depois, que pode ser um dia, um mês, a nova expressão: cite-se por edital. E o papel volta para a pilha do cartório e um dia um funcionário preenche um formulário que é um edital que, no interior, é dependurado no corredor do foro, e ninguém lê. Mas o tempo passa.

Depois que o tempo passou, o papel volta para o cartório, o carimbo da passagem do tempo é colocado, o papel volta para a pilha do assessor do juiz e outra expressão é escrita: ao MP, querendo dizer, manda o papel para o promotor e o papel vai para a pilha do cartório que depois coloca na pilha do promotor ou do assessor do promotor e o promotor vê que o pai não foi localizado, que o edital foi escrito e colocado no corredor, que o tempo passou, que ninguém apareceu para reclamar Maria do Socorro e o promotor escreve: de acordo, pelo prosseguimento.

O prosseguimento é a pilha do cartório, a pilha do assessor do juiz, a escrita: nomeio defensor dativo etc, porque tem que ter advogado, pilha do cartório, pilha do defensor da comarca e o defensor, não tendo outra coisa a fazer no processinho, escreve que não tem provas a produzir, pilha do cartório, pilha do assessor do juiz e... aí muita coisa pode acontecer, digamos que o juiz apenas mande outra vez para o MP e o promotor escreva que está satisfeito com o andamento do processo e que concorda com a perda do poder familiar, pilha do cartório, pilha do assessor do juiz e é lavrada sentença decretando a perda do poder familiar. Maria do Socorro agora está formalmente sem pai e sem mãe, como sempre esteve na verdade da sua vida.

Na casa, Maria do Socorro assopra quatro velas cor de rosa e demonstra que adquiriu um pequeno tique nervoso.

A sentença vai para a pilha do cartório, para a pilha do promotor, para a pilha do defensor e depois não sei pra onde, porque a comarca não conta com assistente social nem ninguém no foro que fique pensando em Maria do Socorro. O juiz não é menorista. A quase totalidade dos juízes não possuem essa vocação, o juiz está muito preocupado com os processos cíveis e criminais, além da organização do foro. O juiz não conhece Maria do Socorro, o promotor também não, o defensor também não, o escrivão também não, o assessor do juiz também não, e muito dificilmente o oficial de justiça a conheça. Quem conhece Maria do Socorro, agora oficialmente sem pai e sem mãe? O pessoal da casa, que está muito ocupado com Maria do Socorro e as outras cinquenta ou cem crianças que precisam brincar e comer todos os dias e tem a questão do dinheiro que está sempre faltando.

Se Maria do Socorro tiver a mesma sorte que tiveram aqueles quatro irmãos de uma grande cidade do interior, durante quatro anos nada acontecerá após a perda do poder familiar. Quatro anos. Então, com essa sorte, Maria do Socorro estará com oito anos de idade. Sem pai e sem mãe. Oficialmente.

No foro, a grita é pelos processos cíveis, os advogados diariamente cobrando do escrivão, querendo falar com o juiz, mas o juiz dificilmente fala com advogados, só o assessor e o assessor, sem mexer a pálpebra ou piscar o olho, limita-se a dizer: faça uma petição, doutor! Em outras palavras, para que falar se pode escrever, não é mesmo? Mas esse é outro papo.

Talvez a sorte de Maria do Socorro seja melhor que a dos irmãos daquela grande cidade. Digamos que após a perda do poder familiar alguém - já que a comarca não conta com assistente social -  alguém tente a adoção. A lei determina que deve ser consultado o cadastro nacional. Maria do Socorro está com cinco ou seis anos, não encontra interessado. Uma outra criança tem menos de quatro anos, surgiu um casal e ela foi embora. O que a maior parte dos casais nacionais querem mesmo é criança recém nascida, branca, olho azul e sem nada de doença, atual ou futura. Com as exceções que se deve exaltar, é claro. Depois disso as dificuldades são crescentes. Maria do Socorro estava no limite, com quatro anos, quando ficou oficialmente sem pai e sem mãe. Poderia ter sido adotada. Poderia ter encontrado pai e mãe. Poderia estar morando numa casa só dela. Poderia deitar à noite com a mãe cantando canção de ninar e o pai fazendo um carinho nos seus cabelos. Poderia. Mas Maria do Socorro deita sozinha, num quarto onde dormem outras crianças, e ninguém canta canção de ninar. Quando acorda na madrugada vê tudo escuro, sente medo, mas aprende a controlar o horror porque ela está só com ela mesma.

 

Sono una delle mille bambine in silenzio

nelle grandi stanze di un istituto.[1]

 

Que fazer depois dos oito anos? Aprender a conviver com a ideia que família não foi feita para ela, Maria do Socorro. Tem gente que nasce rica, tem gente que nasce torta, ela nasceu sem família. É assim. Será assim. Tudo bem que tem o colégio, pela manhã, na escola pública ali do lado, e tudo bem que não terá biblioteca e muito menos internet para fazer pesquisas. Seu estudo será deficitário, ela terá menos ferramentas para vencer na vida.

Vencer na vida? Ora, bobagem!, o que Maria do Socorro precisa é vencer o medo da vida, saber que sua adolescência será dentro da casa repleta de regras e horários. Não importa, depois dos dezoito poderá recuperar os afazeres adolescentes, as loucuras adolescentes, os namoros adolescentes, os sonhos adolescentes. Mas até os dezoito permanecerá dormindo sozinha, sem acalanto. A gente acostuma.

Um dia, muito muito tempo depois, acontece a festa de aniversário, Maria do Socorro completa dezoito anos. Depois da festa o pessoal da casa mostra a pequena mala com suas poucas coisas e abre a porta: lá está o mundo, ele é seu. E Maria do Socorro, carregando sua pequena mala, caminha pela rua que tanto conhece, para na esquina, e só então lembra de perguntar: o que faço agora? E não há qualquer pessoa para responder, porque o Estado não tem mais obrigação para com ela, o pessoal da casa irá lembrar de si mas nada mais pode fazer, o juiz não está na comarca há muitos anos, deve andar lá pela capital, promovido, o promotor também; agora juiz e promotor são outros, nunca ouviram falar em Maria do Socorro, o defensor continua defensor nos papeis, o escrivão está mais velho, começaram os cabelos brancos, e o funcionário que colocava carimbo mudou de emprego e casou, agora ele tem duas famílias, a dos pais e a dele própria, êta sujeito de sorte!

Maria do Socorro está caminhando pela rua e tudo dependerá da sua sorte que, até hoje, não foi lá essas coisas. Quem se aproximará dela: o traficante, o gigolô, um rapaz bonito que será seu futuro marido?

E quem sabe? E para que saber? Já pensou se a gente conhecesse a data da morte? Melhor é nada saber do futuro. Então está bem, ao menos nessa parte as coisas estão funcionando para Maria do Socorro, ela não tem a mínima ideia do seu futuro, aliás nem do dia seguinte.

 

Digamos, só digamos, assim por diletantismo, à falta de coisa melhor para fazer numa tarde chuvosa de domingo, que uma alma santa decidisse intrometer-se no futuro dessas crianças e organizasse uma bagunça para responsabilizar toda essa gente preocupada com tudo, menos com Maria do Socorro, que entrou com um ano de idade no abrigo e de lá saiu com dezoito, oficialmente sem pai e sem mãe.

Você seria essa alma santa?


José Carlos Laitano, ( "O dia em que começarem a roubar livros, o mundo será melhor".) é escritor, juiz in pensione, professor na Escola Superior de Magistratura (ESM) e ex diretor cultural da Associação dos Magistrados Brasileiros nas gestões de 1995 - 2001. Mantém a coluna Paraíso Brasil em jornais do interior do estado do RS e ministra oficinas opara secretários de juiz e assessores de desembargador. Entre seus livros publicados estão: Essa coisa chamada Justiça, P da cara, Porto Alegre: curvas e prazeres, Jogo do passa-conto, Crônica da paixão inútil, Bianca di Morano, A Cor Verde do Arco-Íris, Minha mulher chamáva-se Jarbas e Criação do texto jurídico. Você vai achá-lo em :

www.josecarloslaitano.com


 

 

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