Há muito tempo uma morte não me afetava tanto quanto a morte do Arthur. Primeiro, por que estamos falando da morte de um jovem, algo que, materialmente, nunca estaremos preparados para compreender. Segundo, por que perdemos um gênio, algo, para mim, impossível de ser compreendido apenas sob uma perspectiva terrena. Particularmente, enquanto velávamos o grande Arthur Bonilla, meu encontro com seu pai foi o desencadeador de uma série de questionamentos e recordações, que, sei lá por que, estavam adormecidas em algum lugar das minhas lembranças.
Foi Don Gregório Bonilla, figura forte, de opiniões polêmicas, assim como o filho, que no meu abraço fez questão de lembrar o início de tudo – “nunca esqueci que foi pela sua mão que ele começou...” –, em uma manifestação que me deixou ainda mais combalido diante da tragédia. O ano era 1988, e, na saída de uma aula de direito penal, fui interpelado pelo professor: “Andrei, o Lima (nosso saudoso Maestro Luís Lima) me falou que você toca violão por partitura, e eu gostaria que você desse umas aulas para o meu filho, você conhece o Arthur?”. Diante de minha negativa, o Gregório fez uma propaganda danada do moleque, dizendo que tinha um ouvido muito bom (no que ele estava errado) e que parecia ter talento para tocar violão. Pois bem, dois dias depois a Dona Júlia, mãe do Gregório, apareceu lá em casa, a bordo de seu corcel azul, trazendo o guri, que carregava um violão quase maior do que ele.
Se a primeira impressão é a que fica, desde o primeiro momento tive a lucidez de que estava em frente a algo muito diferente de tudo que já havia visto na vida. Para começar, o ouvido do guri não era "muito bom", como dissera o Gregório, era impressionante (ele se divertia reproduzindo no violão sons da rua, como passarinhos e buzinas, indo direto nas notas certas). Além disso, as aulas eram um desafio, por que as partituras que eu preparava para os encontros eram devoradas em 5 minutos, e aí ele começava a “incomodar” que queria que eu ensinasse algumas músicas “clássicas” para ele (a Bachianinha, do Paulinho Nogueira, que ele, com 10 anos, tocou no palco da Coxilha, foi fruto de nossos encontros, embora eu ache que ele jamais tenha olhado para a partitura, tirando tudo de ouvido). Nos quase três anos em que estudou comigo, perdi a conta das histórias inacreditáveis proporcionadas pelo talento sobre-humano do Arthur, como a primeira vez em que ele esteve no palco de um festival de “gente grande”, em Tupanciretã, quando ele pediu para que eu criasse um solo parecido com um solo do Lúcio Yanel, e que, para embasbacar a todos, foi feito com a técnica flamenca do picado, algo impensável para um moleque de 10 anos, comigo fazendo o violão dobrado e o Lenin Nuñez segurando a harmonia.
Depois disso, por circunstâncias diversas, cada um seguiu seu caminho, e algumas poucas vezes voltamos a nos encontrar. Uma vez, já adulto, me perguntou quando iríamos juntar o violão dele com a minha "guitarrita". Noutra, falou que eu tinha que largar desse negócio de tocar rock, e por aí vai. Nosso último encontro foi há uns três anos, eu, ele e o Maestro Alexandre Takahama (outro que estudou comigo quando criança). Durante umas duas horas de uma fria e ensolarada tarde de julho, conversamos em um bar ao lado do Ginásio Municipal de Cruz Alta, e ali falamos fundamentalmente sobre música. Só agora, depois de sua morte, percebi que algumas das reações do Arthur comigo foram típicas de uma relação aluno/professor, como se o tempo não tivesse passado, muito embora, naquele momento, eu fosse apenas um músico normal (esforçado, mas normal), conversando com um gênio. Por exemplo, Arthur me agradeceu um tanto quanto envergonhado, quando falei que achava sua execução melhor que a do Yamandu, como se fosse possível medir o imensurável, no caso, o grau de genialidade de dois gênios (“ouvir isso de ti, bah... obrigado..."). Mas o Arthur de personalidade forte também estava presente: “Arthur, por que você não vai embora para o Rio?”, ao que ele me respondeu de bate pronto, “e tu, por que não vai?”.
A verdade é que a passagem do Arthur por aqui é algo a ser explicado apenas em um plano maior, como se o talento dele fosse a soma de muitas vidas que, nesta, haviam atingido seu ponto máximo. Quando soube de sua morte, na manhã da última sexta, imediatamente lembrei de uma história contada pelo Raphael Rabello, que, após a execução perfeita de uma música, foi questionado, não sei se pelo Hermínio Bello de Carvalho ou algum outro nome do qual não lembro exatamente, se tinha consciência de que morreria jovem, pois seu talento havia chegado ao ponto máximo, algo que só se obtém ao final da jornada. A história mostrou que a tese estava certa, e Raphael nos deixou com apenas 33 anos, curiosamente a mesma idade da partida do Arthur. Coincidência ou não, os dois eram, indiscutivelmente, gênios, assim como também o foram, em suas épocas e estilos, Mozart, Jimi Hendrix, Paganini, Noel Rosa, Wes Montgomery, Charlie Parker e tantos outros que poderiam aqui ser citados, cujos talentos eram maiores que suas breves existências terrenas.
Talvez escrevendo esse texto me passe um pouco da inquietação que está comigo desde sexta, e que me fez até perder um pouco a vontade de tocar (o André me falou que não é para se preocupar, pois ela volta). No próximo final de semana, por conta do problema de saúde de meu pai, estarei novamente em Cruz Alta, e, junto com o André, já combinamos de visitar o Gregório. Um pouco para conversar, um pouco para relembrar, mas também para falar do tal CD inédito que só o Arthur e o Takahama sabiam que existia, e cujo original está com o Japa (“Andrei, você não imagina o que é o CD”, me disse ele na madrugada da última sexta).
Em minha longa estrada como músico, talvez eu nunca tenha recebido um elogio tão grande quanto o que recebi na manhã de sábado, na frente de alguns músicos que lembravam do talento sobrenatural do Arthur. Ao aproximar-se do grupo, o Gregório me abraçou e apontou para mim dizendo: “este é o culpado...”. Mesmo tendo a consciência de que o talento do Arthur se manifestaria de qualquer maneira, ainda que jamais tivesse frequentado qualquer aula de música, que culpa boa de carregar.
em tempo: esse jovem músico que nos deixa por essas coisas da vida, era filho de um grande amigo de juventude e quero que através deste texto, retirado do facebok, receba meu conforto e todo o meu carinho, pai que sou de um também amigo do seu filho. Com Deus, queridos.